Pular para o conteúdo principal

Crônica: "Não é nada, é uma longa História" falou o professor

Domingos Pellegrini, na Gazeta do Povo

O professor de História, no seu primeiro dia de aula, entra e os alunos nem percebem, conversando, falando ou jogando no celular. Ele escreve na velha lousa um imenso H, e depois vai desenhando cabeças com bigodes e barbas, enxada, foice. A turma foi prestando atenção, trocando risinhos, e agora espera curiosa. Finalmente ele fala:

– Não vamos estudar aquela História com H, só com heróis e grandes eventos! Vamos estudar a partir da nossa história, daonde e como viemos. Por exemplo, como é seu sobrenome?

– Oliveira.

– Pois é, muitos Oliveiras têm esse nome porque eram imigrantes europeus, fugidos de perseguições religiosas, então adotavam nomes de árvores ou plantas, Oliveira, Pereira, Trigueiro e tantos outros. E o seu sobrenome? – Santos.

– Foi o nome adotado por muitos ex-escravos ou filhos mestiços de fazendeiros com escravas. Você é, como diz o IBGE, pardo, o que não é vergonha nem demérito algum, ao contrário, a maioria do povo brasileiro é pardo. E o seu sobrenome?

– Vicentini.

– Origem italiana. Os italianos, como os espanhóis, alemães, japoneses, vieram para cá para bater enxada, trabalhar nos cafezais quando os escravos foram libertados.

O engraçadinho da turma levanta o braço:

– Meu sobrenome é Silva, professor. Tem mais Silva na lista telefônica que formiga em formigueiro. Daonde eu vim?

– Da selva. Silva é selva, em latim. Foi o nome dado pelos romanos antigos aos que vinham das florestas para morar na cidade, eram os “da selva”. Se a gente pensar que a maioria das pessoas morava no campo há meio século, e depois se mudou em massa para as cidades, a origem do nome até se justifica.

A turma espera em silêncio: aonde ele quer chegar?

– Proponho o seguinte. Vocês conversem com seus pais, avós, tios, para saber dos antepassados. Daonde vieram, por que, trabalharam e viveram onde e como. Cada um contará então a história de sua família, e daí vamos situar essa história familiar na história social. Vamos falar da cafeicultura, por exemplo, depois que alguém falar que seu avô trabalhou com café.

Uma mocinha levanta a mão:

– Não só meu avô, professor, minha avó conta que também trabalhava. Levantava às cinco, fazia café, dava de mamar ao nenê, porque ela diz que sempre tinha um nenê no ombro, outro na barriga e uma criança na barra da saia. Depois de fazer o café e tratar das galinhas, recolher os ovos, tirar leite das vacas e cuidar da horta, ela ia levar marmita pro meu avô e os filhos maiores no cafezal, e ficava lá também batendo enxada até o meio da tarde, quando voltava pra preparar e janta e…

– Bem, só com isso que você contou podemos estudar a cafeicultura e o feminismo, comparando as famílias daquele tempo e de hoje, tantas mudanças. Cada um de vocês, com sua história, vai acender o fogo do conhecimento em cada aula. Eu só vou botar lenha, dar as informações, vocês vão dar vida à História, que aí, sim, vai merecer H maiúsculo! Combinado?

Os alunos aplaudem, entusiasmados, comentam: nossa, massa, uau, professor maneiro!… Saem, e depois ele, saindo, dá com o diretor nervoso:

– Eu ouvi sua aula, professor, aqui ao lado da porta, como faço com todo novato! O senhor tire essas ideias da cabeça, viu? Vai ensinar conforme o programa, começando pelo descobrimento, as três caravelas, a calmaria etc. Entendido? Ora, onde já se viu, História viva… Só por cima do meu cadáver!

O professor novato vai pelo corredor, sentindo-se morrer por dentro. Na sala dos professores, nas paredes estão Tiradentes e o crucifixo de Jesus, dois mártires. Ele chora, perguntam por que, apenas consegue dizer “não é nada, é uma longa História”.

Comentários

Top 5 da Semana

Fotos antigas de São Félix, no Recôncavo da Bahia

Desde as primeiras décadas de sua existência a fotografia já mostrava o seu imenso potencial de uso. A produção fotográfica de unidades avulsas, de álbuns ou de coletâneas impressas abrangia um espectro ilimitado de atividades, especialmente urbanas, e que davam a medida da capacidade da fotografia em documentar eventos de natureza social ou individual, em instrumentalizar as áreas científicas, carentes de meios de acesso a fenômenos fora do alcance direto dos sentidos, as áreas administrativas, ávidas por otimizar funções organizativas e coercitivas, ou ainda em possibilitar a reprodução e divulgação maciça de qualquer tipologia de objetos. (leia mais em Fotografia e História: ensaio bibliográfico ) Neste sentido, a disponibilização de imagens fotográficas para o público leitor deste blog, é uma máxima que nós desejamos, pois a imagem revela muitos segredos.  Para ver mais fotografias: VISITE NOSSA PÁGINA NO FACEBOOK Enchente em São Félix - cedido por Fabrício Gentil Navio da...

O Terreiro Ilê Axé Alabaxé,– “"A Casa que Põe e Dispõe de Tudo"

É com muito pesar que noticiamos o falecimento do Babalorixá Edinho de Oxóssi, será muito justo neste momento, republicarmos a história do Terreiro lIê Axé Alabaxé,– “"A Casa que Põe e Dispõe de Tudo", um local com que o nosso babalorixá tem suas intimidades reveladas. Sabendo que seria do agrado de muitos maragogipanos que desejam conhecer a nossa história, resolvi publicar esse texto e uma entrevista concedida pelo Babalorixá Edinho de Oxóssi encontrada no site ( http://alabaxe.xpg.uol.com.br/ ) Oxóssi O Terreiro lIê Axé Alabaxé,– “"A Casa que Põe e Dispõe de Tudo"   A cada ano, após a colheita, o rei de Ijexá saudava a abundancia de alimentos com uma festa, oferecendo à população inhame, milho e côco. O rei comemorava com sua família e seus súditos só as feiticeiras não eram convidadas. Furiosas com a desconsideração enviaram à festa um pássaro gigante que pousou no teto do palácio, encobrindo-o e impedindo que a cerimônia fosse realizada. O rei mandou chamar os...

Uma Breve História de Maragojipe, por Osvaldo Sá

Obs.: Este blog é adepto da grafia Maragogipe com o grafema G, mas neste texto, preservamos o uso da escrita de Maragojipe com o grafema J defendida pelo autor. Uma Breve História de Maragojipe Por Osvaldo Sá A origem do município de Maragojipe, como a de tantos outros municípios do Recôncavo Baiano, remonta ao período do Brasil Colonial, durante o ciclo da cana-de-açúcar. Conta a tradição popular que a origem do município deveu-se à existência de uma tribo indígena denominada “Marag-gyp”, que se estabeleceu em meados do século XVI às margens do Rio Paraguaçu. Destemidos e inteligentes, mas adversos à vida nômade, esses indígenas dedicavam-se ao cultivo do solo, à pesca e a caça de subsistência, manejando com maestria o arco e flecha e também o tarayra (espécie de machado pesado feito de pau-ferro), com o qual eram capazes de decepar de um só golpe a cabeça do inimigo. Osvaldo Sá, 1952 - Aos 44 ano Segundo a tradição da tribo, os mais velhos contavam que suas pri...

Prefeitos de Maragogipe, do final do Império à Atualidade

Durante os períodos de Colônia e Império, aos presidentes da Câmaras de Vereadores atribuíam se-lhes as disposições executivas. O plenário votava a matéria e o presidente executava a proposição aprovada. Dos presidentes da Câmara de Vereadores de Maragogipe, os que exerceram por mais vezes o cargo, foram o Pe. Inácio Aniceto de Sousa e Antônio Filipe de Melo. O primeiro, no meado do século XIX, eleito deputado à Assembléia Provincial, renunciou ao mandato, porque optou pelo de Vereador à Câmara de Maragogipe, e se elegeu presidente desta. Como Presidentes do Conselho Municipal Manuel Pereira Guedes      (1871 - 1874) Artur Rodrigues Seixas       (1875 - 1878) Antonio Filipe de Melo      (1879 - 1882) Dr. João Câncio de Alcântara (1883 - 1886) Silvano da Costa Pestana   (1887-1890) Com a República, cindiu-se o poder, adotando a corporação o nome de Conselho, e o executivo o de Intendente. Com este n...

A Pirâmide Invertida - historiografia africana feita por africanos (Carlos Lopes)

Neste momento, você terá a oportunidade de ler um pouco do fichamento do texto de Carlos Lopes "A Pirâmide Invertida - historiografia africana feita por africanos. Na introdução Carlos Lopes tenta traçar uma “ apresentação crítica dos argumentos avançados pelos três grandes momentos de interpretação histórica da África ” (LOPES; 1995). Para ele a historiografia deste continente tem sido “ dominada por uma interpretação simplista e reducionista ”, mas antes do autor começar a falar sobre estes momentos, ele demonstra um paralelo da historiografia africana com um momento “ em que os historiadores estão cada vez mais próximos do poder ”, e afirma que estes historiadores são todos de uma mesma escola historiográfica que proclama “ a necessidade de uma reivindicação identitária ”, citando como exemplos “ de uma interdependência entre a História e o domínio político ” “Inferioridade Africana” É através do paradigma de Hegel - o "fardo" do homem branco -, que o ocidente conhec...