Carlos Laranjeira
Jornalista, Carlos Laranjeira é autor de livros.
Manhã de domingo de sol quente: eu jogava rebatida com Edmilson de Jesus Pacheco, o Edil Pacheco, no largo do Porto Grande. Entre o final dos anos 50 e o início da década de 60, o largo era coberto por uma grama rasteira, propícia à prática desse esporte, bastante apreciado pelos adultos e no qual se utilizava a bola de pano.
Ouvimos gritos provenientes do Beco, em seguida Alemão, o pai de Edil, começou a correr pela Rua General Pedra, em direção à Praça Municipal. Continuamos a chutar e pegar a bola, mas os gritos de desespero prosseguiram e, em decorrência do movimento de pessoas, logo percebi: vinham da casa de Napinho.
De short e sem camisa, fui à casa de pintura amarela e vi Napinho estirado no sofá, na sala de entrada, sem respirar. Em minutos, adentrou um homem alto, alentado, de pele morena, com o estetoscópio, instrumento para verificar as reações do paciente, acompanhado do pai de Edil, que indagou;
-Então, doutor, o que dá para fazer?
-Nada mais, está morto.
Foi a minha primeira visão da morte: Napinho, pai de Alemão e avô de Edil, um homem cujo corpo forte foi moldado pelo impulso que dava com o remo às canoas, embarcações utilizadas na pesca inclusive do camarão, com a qual ergueu uma das famílias mais numerosas e ativas do bairro, estava ali estirado, inerte, sem vida.
E o homem alto, de pele morena (o qual, com uma autoridade que não suscitava desconfiança, disse: “está morto”), quem era? Se nesse momento de aflição foi pronunciado o seu nome, não escutei. Ao mudar o olhar de direção, na casa apinhada de gente, não notei mais a sua presença entre as dezenas de pessoas inquietas e agoniadas.
Meses depois, creio, quando fazia a Primeira Comunhão com a dona Ziza, irmã do Padre Florisvaldo José de Souza, eu descia a ladeira da Enseada, com uma pedra à mão e o mesmo homem alto, moreno e corpulento, andar desaprumado, dirigiu-se a mim e pediu:
-Menino, dê-me essa pedra.
Dei-lhe.
Creio que a partir desse dia ele soube de quem eu era filho, eu também quem ele era: Dr. Odilardo Uzeda Rodrigues, que dividia com o Dr. Barreto, morador na Rua Cel. Felipe de Melo, ao lado da casa de Alfrelice Guerreiro, o Nelson do Café, as glórias do bom êxito da prática da medicina numa cidade carente de recursos de aparelhos médicos. Certo dia, de tanto jogar bola na prainha ao lado da ponte que liga o Porto Grande ao Porto Pequeno e nadar no braço do rio Paraguaçu, o coração pareceu-me descompassado, falei com mamãe que pediu ao Dr. Odilardo para consultar-me em seu escritório, quase ao lado da Associação Atlética, da qual ele seria presidente.
- Vá, menino, você não tem nada.
O Dr. Odilardo era mais do que um médico: professor, diretor do Ginásio Simões Filho e orador público cuja voz que escapava dos lábios, do alto do coreto da Praça da Igreja Matriz sem o auxílio de amplificadores, podia-se ouvir até 500 metros de distância. Nos desfiles dos alunos do ginásio e do curso normal, ele também marchava à frente dos tambores e das caixas de repique e marcação, e encerrava-os sempre nessa praça, onde subia ao coreto e realizava manifestações verbais. O seu discurso não era lento nem apressado, obedecia a um ritmo em que ele sabia fazer a alternância vocal, ouvido em religiosa atenção. Em certos instantes da oratória, ele vibrava as mãos no ar, virava-se em direção à igreja e como se dirigisse ao padroeiro São Bartolomeu, com um temperamento abrasador animado pelos seus sentimentos religiosos, era dominado pelo êxtase e com este encanto arrancava arrepios do público.
Sempre que ia comprar à noite o jornal A Tarde na banca do Corujinha, depois do Moreno, para ler para o meu pai acamado, vítima de derrame cerebral, eu o via a percorrer com a vista o mesmo jornal no bar de Ariston Pimentel Vieira, que havia sido prefeito e Odilardo seu secretário. As páginas do jornal esparramavam-se à mesa e ele, sentado ao lado, lia-o quase inteiro, assim eu acreditava, pois muitas vezes encontrava papai a dormir e ao retornar à praça ele ainda não havia concluído a leitura.
Anos depois, já no JORNAL DA BAHIA e na Rádio Cruzeiro, papai faleceu num sábado ao cair da tarde. Alertado ao telefone pelo primo Jahvé Laranjeira cheguei a Maragogipe domingo de manhãzinha, indaguei de mamãe que médico o considerou morto.
-Foi Dr. Odilardo.
-Ele informou o preço?
-Não. Eu perguntei e ele disse que não era nada.
Naquele homem alto, alentado, de pele morena, jorrava uma alma generosa, com a qual aprendi muito na arte da palavra, sem ter sido seu aluno e na maneira de oferecer favores com uma mão, sem alardeá-los em trombetas com outra.
Jornalista, Carlos Laranjeira é autor de livros.
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