Pular para o conteúdo principal

Irmã Dulce: A história que não se apaga

Carlos Laranjeira

Sempre no final do ano lembro da figura de uma mulher esguia, baixa e magra, que eu vi pela primeira vez em Salvador, há pouco mais de 40 anos, ao sair da praia da Boa Viagem, no alvorecer. Ela batia porta a porta e ao acordar o morador pedia mantimentos, que acomodava na Kombi que a acompanhava.

Na minha falta de experiência, não podia entender como alguém sacrificava horas de sono para ao nascer do sol, de casa em casa, solicitar esmola para outras pessoas. Ao narrar o acontecimento à minha mãe soube de quem se tratava: Irmã Dulce, uma freira que pedia esmolas para alcoólatras, moradores de rua, idosos e crianças abandonadas que ela recolhia das calçadas e dava comida, remédios e um lugar para permanecer com assistência médica.

Deste dia em diante ela fincou pé em minha memória e seu olhar cruzou com o meu no final do ano seguinte. Repórter do JORNAL DA BAHIA, fui destacado pela chefia de reportagem para checar a veracidade da notícia, segundo a qual, faltava-lhe dinheiro para o pagamento do 13º. salário dos servidores do hospital que ela construia para dar abrigo a um número cada vez maior de indivíduos abandonados pela sociedade. A notícia saiu no jornal e, dias depois, como uma mágica, o dinheiro lhe apareceria por ordem do banqueiro Amador Aguiar que, de São Paulo, não parou de telefonar enquanto o volume de dinheiro não foi liberado à Irmã.

Confesso que as atribulações de uma pequenina mulher levaram-me a refletir a vida e fazer indagações para as quais não encontrava respostas. A leitura persistente, à qual me habituei, revelou-me que a vida é assim mesmo: nós vivemos uns para os outros, não obstante nem sempre o que oferecemos recebemos em troca: às vezes tiram-nos mais do que podemos dar, nos roubam e nos humilham, mas aprendi, também, que os invejosos e gananciosos são pessoas cheias de temores, de desejos e angústias, pois vivem atormentados com a possibilidade de que estranhos façam a eles o que fizeram aos outros.

Nessa época de festas, costumamos nos embriagar pela velocidade, pelo celular com vídeo, pelo culto do corpo, pelo televisor de 40 polegadas, pela casa na praia, pela chácara ou fazenda, por mais um imóvel na cidade, sabe Deus para que! E nessa embriaguez somos dominados pelo vício de consumir, nem que tenhamos de corromper e nos tornar corrompidos ou ingerir drogas para ter coragem de fazer o que achamos necessário à ambição.

Aos 63 anos, ainda não sei o que é a felicidade que todos ou quase todos buscam como um tesouro e por ela sacrificam a saúde, a reputação, a liberdade, pois a associam ao gozo das coisas materiais. Por ignorá-la, e não saber ao menos o que representa, sou destituído de ambição. Valorizo a camaradagem, o esforço, o objetivo alcançado, as pessoas que executam uma arte, um texto, um filme, uma pintura, um desenho, o enredo de uma história ou a letra de uma música.

Valorizo modelos de valores humanos e espirituais, símbolos da realidade dos deserdados que vivem esmagados pela miséria. Exemplo dessa situação que serve de padrão a ser imitado é a Irmã Dulce que, não dando bolas para esse tipo de felicidade, pelo qual a maioria é capaz de roubar, matar e se drogar, pregou justiça sem a voz. Usou apenas o gesto e, com ele, à base de esmolas, criou um dos maiores hospitais brasileiros para os pobres.

A sua pequenina figura me apareceu no amanhecer de um dia do mês de dezembro, quando eu pensava que a vida se resumia ao sexo e à bebida e sem entender como alguém sacrificava os momentos de prazer para pedir esmola para os bêbados e doentes, por cuja situação ela não podia sentir-se culpada. Essa sua imagem permanece em minha memória, como uma história que não se apaga, a insinuar o enredo de uma crônica de que o prazer da vida não está em vivê-la, mas em achar um motivo para viver.

Carlos Laranjeira é jornalista, fundador e diretor do jornal POLÍTIKA DO ABC. Nasceu na cidade de Maragogipe, Bahia, e se encontra em São Bernardo do Campo, SP, desde o ano de 1973.

Comentários

Top 5 da Semana

Fotos antigas de São Félix, no Recôncavo da Bahia

Desde as primeiras décadas de sua existência a fotografia já mostrava o seu imenso potencial de uso. A produção fotográfica de unidades avulsas, de álbuns ou de coletâneas impressas abrangia um espectro ilimitado de atividades, especialmente urbanas, e que davam a medida da capacidade da fotografia em documentar eventos de natureza social ou individual, em instrumentalizar as áreas científicas, carentes de meios de acesso a fenômenos fora do alcance direto dos sentidos, as áreas administrativas, ávidas por otimizar funções organizativas e coercitivas, ou ainda em possibilitar a reprodução e divulgação maciça de qualquer tipologia de objetos. (leia mais em Fotografia e História: ensaio bibliográfico ) Neste sentido, a disponibilização de imagens fotográficas para o público leitor deste blog, é uma máxima que nós desejamos, pois a imagem revela muitos segredos.  Para ver mais fotografias: VISITE NOSSA PÁGINA NO FACEBOOK Enchente em São Félix - cedido por Fabrício Gentil Navio da...

Uma Breve História de Maragojipe, por Osvaldo Sá

Obs.: Este blog é adepto da grafia Maragogipe com o grafema G, mas neste texto, preservamos o uso da escrita de Maragojipe com o grafema J defendida pelo autor. Uma Breve História de Maragojipe Por Osvaldo Sá A origem do município de Maragojipe, como a de tantos outros municípios do Recôncavo Baiano, remonta ao período do Brasil Colonial, durante o ciclo da cana-de-açúcar. Conta a tradição popular que a origem do município deveu-se à existência de uma tribo indígena denominada “Marag-gyp”, que se estabeleceu em meados do século XVI às margens do Rio Paraguaçu. Destemidos e inteligentes, mas adversos à vida nômade, esses indígenas dedicavam-se ao cultivo do solo, à pesca e a caça de subsistência, manejando com maestria o arco e flecha e também o tarayra (espécie de machado pesado feito de pau-ferro), com o qual eram capazes de decepar de um só golpe a cabeça do inimigo. Osvaldo Sá, 1952 - Aos 44 ano Segundo a tradição da tribo, os mais velhos contavam que suas pri...

Padres da Paróquia de São Bartolomeu de Maragogipe

A história de Maragogipe está ligada ao  culto de São Bartolomeu que data dos primórdios da sua vida, da época em que iniciava a sua formação, quando saía das trevas da vida selvagem para iniciar a sua marcha gloriosa na senda do progresso sob o signo o abençoado da Cruz Redentora. A devoção dos maragogipanos para com o Glorioso Apóstolo vem também dos seus primeiros dias, do tempo em que era ainda uma fazenda pertencente ao luso Bartolomeu Gato, e nela, encontramos o primeiro vigário da Paróquia de São Bartolomeu. A lista abaixo retrata um pouco desta história, as datas ao lado do nome é o ano de início de sua vida enquanto evangelizador. Todavia, em diversos nomes nós não encontramos a data específica, pois somente há deduções. Caso o leitor possa estar contribuindo com a mudança desta lista, pois ainda sim, acreditamos que esteja faltando alguns nomes, será muitíssimo interessante. Agradecemos antecipadamente. (Leia mais sobre " O Culto de São Bartolomeu ", escrito por Odi...

O Terreiro Ilê Axé Alabaxé,– “"A Casa que Põe e Dispõe de Tudo"

É com muito pesar que noticiamos o falecimento do Babalorixá Edinho de Oxóssi, será muito justo neste momento, republicarmos a história do Terreiro lIê Axé Alabaxé,– “"A Casa que Põe e Dispõe de Tudo", um local com que o nosso babalorixá tem suas intimidades reveladas. Sabendo que seria do agrado de muitos maragogipanos que desejam conhecer a nossa história, resolvi publicar esse texto e uma entrevista concedida pelo Babalorixá Edinho de Oxóssi encontrada no site ( http://alabaxe.xpg.uol.com.br/ ) Oxóssi O Terreiro lIê Axé Alabaxé,– “"A Casa que Põe e Dispõe de Tudo"   A cada ano, após a colheita, o rei de Ijexá saudava a abundancia de alimentos com uma festa, oferecendo à população inhame, milho e côco. O rei comemorava com sua família e seus súditos só as feiticeiras não eram convidadas. Furiosas com a desconsideração enviaram à festa um pássaro gigante que pousou no teto do palácio, encobrindo-o e impedindo que a cerimônia fosse realizada. O rei mandou chamar os...

A Pirâmide Invertida - historiografia africana feita por africanos (Carlos Lopes)

Neste momento, você terá a oportunidade de ler um pouco do fichamento do texto de Carlos Lopes "A Pirâmide Invertida - historiografia africana feita por africanos. Na introdução Carlos Lopes tenta traçar uma “ apresentação crítica dos argumentos avançados pelos três grandes momentos de interpretação histórica da África ” (LOPES; 1995). Para ele a historiografia deste continente tem sido “ dominada por uma interpretação simplista e reducionista ”, mas antes do autor começar a falar sobre estes momentos, ele demonstra um paralelo da historiografia africana com um momento “ em que os historiadores estão cada vez mais próximos do poder ”, e afirma que estes historiadores são todos de uma mesma escola historiográfica que proclama “ a necessidade de uma reivindicação identitária ”, citando como exemplos “ de uma interdependência entre a História e o domínio político ” “Inferioridade Africana” É através do paradigma de Hegel - o "fardo" do homem branco -, que o ocidente conhec...