Tempo de Relembranças
Por Ronaldo Souza
Os mais velhos, os que não mais podiam carregar a areia lavada do Paraguaçu e Cachoeirinha, que não mais suportavam o peso das grandes latas de óleo de baleia e de cascalho recolhido na fimbria dos mangues, estes, os mais velhos, demoravam-se em prolongadas conversas vespertinas, vendo o trabalho ingente dos negros luzidios de suor e ouvindo as ordens do mestre-de-obras, o sargento Fernandes Cazado.
Era e é costume cultural maragojipense, o de observar obras, mesmo não sendo suas, como o fazem os engenheiros ou desocupados.
Os três amigos, dois já de cãs, outro vergado pelo peso dos anos sofridos, eram o negro Elesbão, que veio da África como escravo, onde era chamado Okomirô; o outro, de pele tisnada de sol e acobreada, descendia dos tupinambás, primeiros nativos maragojipanos, era Ubiratan, conhecido em sua antiga e extinta tribo como o filho do ria-mar. O terceiro dos amigos, era o branco Martin, cujos pais vieram nas primeiras viagens de colonização lusa e tinha traços e feições européias. os três conversavam, olhavam a obra monumental e, a mais das vezes, olhavam para lugar nenhum, deixavam seus olhos se espraiarem pelo mangal que cincundava a vila, verdadeiro supermercado gratuito da população,. onde vivia abundante e saborosa faunaou então os olhares se perdiam para os longes do Guaí, no extremo norte do lugar. Falavam pouco, como manda a educação dos idosos, sentidos gastos, mas aguçados para as belezas do local, os sons, as cores, os cheiros. Falou-se, empós, da igreja que se alevantava e o índio disse:
- Vai ser do arco-íris, de Karobitã, nosso Deus! Disse e bateu a cabeça no solo ou quase isso, o que lhe permitia as juntas cansadas.
- Nada disso, falou Elesbão, cor de ébano e do tamanho de um baobá. Aqui vai morar Oxumaré, aquele que leva a água da terra para o céu, orrobobô, arrobobô, disse numa reverência, levando as pontas dos dedos à testa e à nuca.
- A igreja é de Natanael, filho de Tolomeu, Bartolomeu, Apóstolo de Cristo, assim proclamou Martin, o branco, depositário das raízes do catolicismo português e de toda Península Ibérica. Disse e fez o sinal da cruz, persignando-se.
Assim contaram os mais velhos, que passaram estas conversas de geração para as outras que lhes sucederam. Assim contaram os sábios que se assentam nos fundos da matriz, um senado conspícuo e eticamente bem melhor que muitos dos que conhecemos. Assim se constrói a história ou se inventa a lenda, nos dois casos evidencia-se a cultura, alma dos povos.
Cobram-me escritos atuais, taxam-me de saudosista, como se relembrar o passado fosse algo danoso ou feio. Como se os memorialistas não tivessem seu valor literário. Esta cobrança, este patrulhamento intelectual, por certo, advém da inaptidão daqueles que são incapazes de fazer, embora se reconheça, pelo autor pífio, serem estas linhas desprovidas de encanto e mérito.
Anos e anos depois, a igreja pronta e majestosa, eram outros os três amigos e chamavam-se Orlando, Mix e Marechal, mosquiteiros de Baco, inseparáveis nos folguedos da bola e do copo. Estavam em barraca tosca e animada e nessas primeiras horas da alvorada, discutiam sobre importantes e graves problemas nacionais, as invenções trabalhistas de Getúlio. Esses amigos mudavam de nomes e de épocas, mas eram sempre a síntese da convivência fraterna do maragojipense, a alma terna a boa das gentes do lugar, a picardia de Bobôco, sábio sem nenhuma letra, generoso e com seu cetro transformado em pandeiro; Mãe Pissu aparando as crianças em seu profícuo ofício de obstetrícia aprendido na faculdade da vida; Euzébio e sua pirotecnia com seus foguetes que levavam mensagens ao céu estrelejado.
A síntese da essência vital maragojipana passa pelo samba-de-roda de Aurinho e Memeu de Chica, pela sabedoria de Antigdó e Arlindo, de Campeão e Merete, de Benedito Lopes e João de Braúlio, somente para citar alguns dos Bambas do Cajá, porta do mar, reduto de pescadores, com suas redes de pesca e poesia. Passa por Juquinha e Marotão, por Bibi Laranjeiras e Antônio Garangau, expoentes literários.
Passa por Nou, músico exemplar, por Nené e os Bahia, os Mato Grosso, os Rosário, os Guerreiros. A alma da terra e do povo está nas festas da Associação, todos de paletó, festas de gala, aos sons sempiternos de Almério e seu pistom, Odilon e seu sax, Britinho na bateria e Galo Cego fazendo malabarismos com seu pandeiro.
Maragojipe passa e perpassa no Largo da Matriz, de tantos nomes, mas eternamente e sempre conhcido como sendo o da Matriz, da imponente basílica, onde se edificou esta peça valiosa da arquitetura colonial e onde se louva, e canta, e glorifica-se BARTOLOMEU, o santo da pele esfolada, manto de sangue enrolado no braço e a adaga do seu martírio atroz. Somente Michelângelo poderá exprimir, como o fez, a cena do juízo final, nos afrescos da capela Sixtina, no Vaticano, a magnificência e simbologia da mensagem pictórica, pois enquanto todos discorrem sobre seus feitos e sofrimentos, BARTOLOMEU nada fala, fica mudo, mas mostra a pele de seu corpo sangrento e somente basta para que Deus o escolha e o acolha no Seu Reino da glória!
A alma dessa gente, de índole boa, só tem o defeito de ser ingênua e acreditar nos pulhas, naqueles de caráter deformado pela maldade ou pelas circunstâncias de interesses pessoais e escursos. Essa gente sempre crê, e é fácil de ser seduzida pelos engodos e promessas do demo que se traveste em egocêntricos pilantras que só pensam na projeção de suas imagens, embora distorcidas pela fraude, pela mentira e pela perfídia. No entanto, afora acreditar até no que não presta, esta gente maragojipana é leal, amiga e feliz, como um drible de Besouro, uma jogada de Bibiu, a dança de Paca, o dobrado de Heráclio e toda elegância e correção moral de Lalaque, um cavalheiro, sobrinho do maestro e paradigma da cultura e fraternidade de Maragojipe. Esta terra nos deu Durval de Moraes e seus versos inigualáveis; nos deu Heráclio e Alfredo Rocha, glórias da música; a oratória sacra de Dom Macedo Costa; a inteligência de Antônio Rebouças, conselheiro imperial; o barão do Desterro, nominado João José de Almeida Couto e o Brigadeiro Seixas, e o almirante Vieira de Melo e outros nomes inesquecíveis.
E nos oferece, agora nestes tempos de novo século e milênio, a musicalidade de Edil Pacheco, poeta-cantor de todos nós e a cultura fulgurante de Cid Seixas Filho e uma plêiade de artistas do povo, gênios do violão como Dica e Didi da Bahiana (e seus filhos), como Ismael e Social, os toques dos tambores afros, os timbaus, os atabaques de preceitos dos candomblés, os cantos sacros, as bandas, as filarmônicas, os caretas, as comidas, os licores, os doces cristalizados, as balizas, filhas e mães-de-santo, ateus e católicos,heréticos e sacrílegos, santos e loucos, e os poetas, toda essa gente misturada formando a síntese de uma comunidade que confia e crê, que espera e tem fé. De meninas formosas, como Atir que nunca mais a vi, os fulvos cabelos de raios de sol e que continua viva em minhas retinas fatigadas; como um verso de hesrai, a mais bela deusa do oriente com seu trajar de muçulmana da Pedra Branca; como as famílias distintas e tradicionais edificadas sob a égide do amor, com dores e alegrias divididas; como os lavradores que aram das marés e a navalha das ostras para irem buscar o sustento de seus filhos; como as ruínas da fábrica que continua apitando sua sirene de socorro; como o navio que continua chamando muitos para a última viagem...
Assim é Maragojipe, com suas rezas e ladainhas, com seus poemas e canções e com este escriba senil e doente que teima em cantar sua terra acima de todas as coisas. Que esta é minha missão, bem ou mal eu a faço como uma oração latejada ou como uma prece de amor nunca dita Relembraças, nada mais. YOLESHMAN CRISBELES!
Maragojipe, agosto de 2002
Ronaldo Souza
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