Recebi e-mail de Antonio Gregoria de Matos, desejando a publicação deste artigo.
JUSSEMAR WEISS GONÇALVES
Parece ser um fato aceito por especialistas que após o século IV a.C. até a Revolução Francesa, a prática e a reflexão sobre a política não envolveu nenhum tipo de consideração quanto à democracia. Nesse longo período, a prática democrática, se não foi totalmente esquecida, passou por um processo de negação violenta. Essa negação se estendia desde a atitude de Platão, que considerava o fim da democracia não como uma questão histórica, mas como uma questão de princípio. Para esse autor, a democracia não terminou porque esgotou seu modelo, mas por ter sido um erro. A democracia acabou por uma questão de direito, já que ela, na verdade, não deveria ter existido. Passava pela visão de Cícero, que considerava essa forma de organização do espaço público como simplesmente desordem, sem princípios louváveis e dominada na prática por homens despreparados para a vida civil. A reflexão sobre o que devia ser, quais seus princípios e quem deveria exercer a autoridade pública não abandonou o horizonte da preocupação clássica com a política; o que é certo, no entanto, é que essa preocupação pautou-se, após a experiência ateniense com a democracia, em trazer sempre uma crítica ao alargamento do espaço de ação dos cidadãos na gestão dos negócios públicos. O certo é que, embora a filosofia tenha a partir do século I V inaugurado a reflexão sobre a política, esta não se fazia a partir de uma teoria da democracia, mas daquilo que era caro à prática tradicional nas cidades clássicas, ou seja, definir de forma excludente a possibilidade de ação na cidade. Não era apenas uma discussão sobre a participação ligada a uma definição da natureza humana como natureza política, como diz Aristóteles, mas era, de certa forma, construir argumentos que levassem à exclusão da maioria, mediante a criação de um processo de seleção daqueles que dentre os cidadãos poderiam exercer a autoridade na cidade. Assim, com o século IV a. C. a prática da democracia em Atenas se transforma em demagogia, na qual a cidadania perde sua eficácia, já que a participação se transforma em uma ação marcada por troca de favores, na qual a elite, mediante presentes, comprava o voto do demos. A crítica levada a efeito por Demóstenes mostra como a assembléia é utilizada como massa de manobra na concretização dos interesses dos grupos aristocráticos que dominam a cidade. Negando a participação alargada, reduzindo o universo dos partícipes na assembléia, a elite política do século IV em Atenas excluía o demos e dirigia a cidade a partir de seus interesses. A oligarquia domina e através do predomínio de uma postura conservadora exclui a democracia como prática política. A grande reforma que construiu a democracia no século V a. C. e que se fundou no alargamento da participação e na igualdade perante a lei levou à constituição de uma ação política na quais os cidadãos se identificavam uns com os outros na ágora, já que acreditavam que sua palavra marcava a ação do outro. Dessa forma, a democracia se realizava como um concerto no qual os cidadãos a partir da isonomia e da isegoria construíam a si como humanos. A condição humana se realizava como condição política e cada homem se encontrava consigo à medida que participava da assembléia. Nessa dança política, o outro, o sujeito, é reconhecido e necessário ao andamento da democracia, já que cada cidadão se completa na ação do outro. A deliberação estudada por Aristóteles revela esse movimento de reconhecimento da figura do outro como alguém que participa e intervém na vida política do outro. Não democracia sem essa mediação das vozes que se cruzam no espaço da agora. Ora, é isso que o Ocidente negou por vários séculos: a igualdade política, o entrecruzamentos das vozes na assembléia, pois, após os duzentos anos de democracia ateniense, a experiência oligárquica tornou-se dominante. Essa experiência oligárquica retoma a noção de participação aristocrática, na qual apenas o chefe das famílias nobres tem acesso à direção dos negócios da cidade. O que se nota é que, enquanto na democracia ateniense as regalias aristocráticas ligadas ao genos, ao clã, são definitivamente superadas, como demonstram as reformas de Clistenes, o modelo oligárquico realiza não uma superação da tradição, mas um alargamento dela, na medida em que introduz nessa tradição elementos políticos que levam a uma adaptação do modelo patriarcal à organização política da cidade. Assim, retomando o título deste trabalho: como podemos entender a experiência do pão e circo no império? O que temos em Roma enquanto centro de um império é o desenvolvimento de uma pragmática na qual as relações de clientelismo são repostas em uma situação nova. Essa situação nova é o império, com sua forma específica de governar, que traz em si a marca da herança do modelo da república romana. Essa república nunca atingiu o nível de igualdade política semelhante a Atenas, já que a cidade não era entendida como a reunião dos cidadãos, mas como um arcabouço jurídico-político no qual os cidadãos participam mediante leis específicas e práticas que dividem os cidadãos em ordens. É a grande família patrícia que governa o império, ou seus representantes, não existe espaço para a democracia direta como em Atenas. Ora o que temos de diferente no império é o clientelismo se tornando uma forma de mediação entre o império e o povo. Se na república o clientelismo era uma prática que ligava a família patriarcal aristocrática a um grupo de dependentes, famílias pobres e servis, no império essa relação se constitui entre o próprio estado e o povo. É o imperador que assume o lugar do aristocrata; é ele que azeita a relação de dependência que se estabelece, mediante a doação de alimentos e diversão. O espetáculo assume um caráter de unidade, no qual o povo, cliente, se encontra com o seu pai, o imperador, que por meio da apresentação pública recebe a gratificação da festa. O que o espetáculo faz é atualizar a relação de clientelismo, experiência conhecida e característica da política romana, e que no império se fortalece a partir da ação do estado. O povo romano, que em outros tempos distribuía magistraturas, cargos e legiões, agora é mais modesto, não reclama mais do que duas ações: pão e circo. Nesses versos famosos de Juvenal aparece de forma clara como o autor deplora a situação política durante o império. Não há mais ação política, iniciativa dos cidadãos, mas eles, os cidadãos, são governados a partir da premiação vil, concretizada em diversão e alimento. Os versos famosos de Juvenal se tornaram proverbiais em dois sentidos. Primeiro: a prática do “pão e circo” resulta de uma troca entre o povo e a classe dominante. Ela fornece festas e alimentos, e o povo, o consentimento. Segundo: essa troca privilegia a classe dominante e revela uma idéia de despolitização. Em que sentido o ditado de Juvenal deve ser pensado? Juvenal diz: “as satisfações materiais colocam o povo em um sórdido materialismo, no qual as preocupações com a liberdade são esquecidas”. O circo e o alimento fazem com que o povo abandone sua ação política e que, estando satisfeito, deixe de lado a luta pela igualdade. O que faz Juvenal? Mais do que uma explicação, o autor nos brinda com um julgamento, pois coloca o ideal humano como sendo aquele de um ser humano autônomo. Para ele, todo homem deveria fazer política, e não deixar o governo, os políticos, fazer por ele. Ora, o modelo de Juvenal não é o romano, mas o grego ateniense, já que nunca, nem mesmo na república, o povo participou da forma como Juvenal pretende, pois a prática da política do pão e circo é um desdobramento do clientelismo que lubrificava as relações entre elite e povo na cidade republicana. Juvenal lamenta que os homens não agem segundo o ideal, mas segundo um código de custo e beneficio, ou seja, apoio em troca alimento e diversão. Argumentando a partir do ideal, Juvenal vê na ação das elites imperiais uma maquinação, já que aceita a premissa de que todos os homens se interessam de forma apaixonada por política em vez de deixar esta em mãos dos especialistas, ou que os homens fazem da igualdade uma questão de princípio e que não admitem a desigualdade. De novo Juvenal voa para além da experiência romana, que Cícero, em sua obra República, explica de forma clara. Ele diz que o problema da república é uma mudança de mentalidade das elites que abandonaram a velha tradição aristocrática de assumir a direção moral e política da cidade. Para Cícero, a questão está em uma aristocracia que perdeu o sentido da tradição e abandonou o seu preceito de mantenedora de ordem. Em suma, os aristocratas, em troca das riquezas produzidas no último século a. C., deixaram de dar importância a sua função específica de fazer política. Assim, na verdade, Juvenal confunde o seu ideal com a prática romana que nunca pressupôs um ideal democrático. A prática política imperial recupera o ideal republicano do cidadão cliente, já que atualiza a relação hierárquica de participação política da Roma republicana. Quanto à questão da igualdade, Juvenal esquece que em Roma essa igualdade não pressupunha como em Atenas uma ação direta, mas era uma igualdade formal, produzindo mais uma participação seletiva do que universal. Como bem explica Cícero, a participação política era dever para a aristocracia.
REFERÊNCIAS:
ARISTOTELES. Politique. Paris: Flammarion, 1998.
CASTORIADIS, Cornelius. Sobre o Político de Platão. São Paulo: Loyola, 2004. CICÉRON. République. Paris: Belle Lettres, 1986.
CICÉRON, Quintus Tullius. Petit manuel de campagne électorale. Traduit du Latin par J. Y. Boriaud. Paris, 1999.
JUVENAL. Ecrits. Paris: Garnier, 1947. PLATON. Le sofiste. Paris: Gallimard, 1987. _____. Le politique. Paris: Belles Lettres, 1976. VEYNE, Paul. Le pain et le cirque. Paris: Seuil, 1976.
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JUSSEMAR WEISS GONÇALVES
Este texto busca mostrar o significado da política do pão e circo, não apenas durante sua existência no período imperial. O artigo mostra que as raízes dessas práticas estão já na República romana na figura do clientelismo. Palavras-chaves: política, império, igualdade, coisa pública, democracia, deliberação. espetáculo.
Assim, parece que essas duas suposições não são corretas se levarmos em conta a experiência romana que se caracteriza pela apatia política da maior parte dos homens. O que deseja um homem comum é que o governo faça uma boa administração, já que ele, o homem comum, reconhece seu lugar nesse império. Assim, ao reclamar do povo romano, que no império vive comendo e se divertindo, Juvenal coloca, mesmo que de forma não muito correta, uma verdade. A política do pão e circo, embora não seja fruto de um maquiavelismo dos governantes, na verdade revela, e nisso Juvenal tem razão, que a política do ponto de vista dos governantes consiste em evitar que os governados participem ou que participem o menos possível das atividades políticas. Ao afirmar isso, Juvenal mostra uma visão mais real da prática imperial, e reafirma Cícero, que defendia a ação política como uma ação de natureza aristocrática, ou seja, realizada por um grupo de famílias tradicionalmente ligadas à direção da cidade. Dessa forma o governo faz ações a partir das quais apenas ele realiza o ato político, deixando espontaneamente o povo livre da responsabilidade de agir na cidade, para gozar o seu tempo em espetáculos. Também a frase de Juvenal acerta ao revelar que essa visão excludente da ação política imperial despolitiza a cidade, a partir de uma ação que desenvolve uma cultura do apoliticismo. Inegavelmente o provérbio de Juvenal sublinha cruelmente que um dois lados do binômio governo-governado tira mais proveito das coisas que o outro. Não há uma relação de reciprocidade entre governo e governado, intercalando-se no exercício do poder, mas a permanente predomínio da elite na direção do império. Não existe uma relação simétrica. A política imperial, reconhece Juvenal, serve aos senhores do império, militares, aristocratas e homens ricos, que governam para si o mundo. Partindo de um pressuposto-não romano do que seja a política, Juvenal, no entanto, acerta ao detectar o problema: o pão e circo é uma ação de uma elite que governa dispensando o povo da responsabilidade de governar junto. Quem é o governo, pergunta Juvenal? É uma monarquia que retira o populus da res publica, da coisa pública, fazendo com que cada um perceba que daquele momento em diante a política é uma atividade somente da monarquia. A vida cotidiana, diz Juvenal, se esgota em uma rotina fútil de espetáculos. O circo, que era uma velha paixão aristocrática, se transforma em uma mania do povo, que passa a exigir que cada vez mais espetáculos mais elaborados mais eloqüentes. Artistas do império se dirigem a Roma, pois a grande cidade é o lugar de convergência dos melhores. Saídos dos confins do império, gladiadores, mágicos chegam a Roma para propiciar um direito aos cidadãos – o direito ao espetáculo. Assim, diz Juvenal, de política não se fala mais e o cidadão vira espectador, a assistir ao circo. O espetáculo se torna o lugar central do acontecer público, no qual o povo é chamado a participar enquanto sujeito de uma emoção. Essa emoção se realiza de duas maneiras: uma, específica do espetáculo, que liga cada um e todos ao desenvolvimento do trabalho feito na arena, que o catalisa. A outra diz respeito à presença do imperador, que marca de forma indelével o próprio ritual da corte imperial, já que nesses momentos especiais se realiza uma troca, uma simbiose, na qual a grande massa de homens e mulheres sem rosto se encontra com o único individuo, encontra o pai e recebe o seu amor. O imperador volta ao povo, mergulha em seu seio e recebe o clamor de reconhecimento. Ele volta, no sentido em que está distanciado politicamente, pois a política, como já vimos, dispensou a população de seu trato cotidiano. O espetáculo propicia essa volta original que a assembléia realizava na praça pública. Assim, sem a praça, sem a ágora e, portanto, sem ligação de natureza política, o elo entre o imperador e o seu povo se concretiza através do espetáculo, que pela sua grandiosidade revela o caráter quase sagrado dessa visualização do Pai. Juvenal não pára por aí, pois, se os homens romanos não se importam com as desigualdades, em viver nelas, e têm uma atitude apática em relação a ela, o provérbio coloca uma outra ilusão: que a sociedade é justa. O povo se submete com uma docilidade quase igual em regimes diferentes que lhe dão satisfações diferentes. Se os governantes não são justos, não se preocupam com as desigualdades e, portanto, a sociedade é também injusta, o que seria a relação pão e circo? Podemos aceitar que a relação constituída por pão e circo é uma troca? O imperador lhes dá prazer e a si mesmo e o povo devolve passividade política? O pressuposto dessa pergunta é a existência de um acordo, se não claro e objetivo, obscuro, opaco, entre governo e governado, mas não é assim, pois, vista dessa forma, ou seja, como emanação da vontade do dirigente e que se ordena a partir de uma lógica hierárquica, política não é um contrato que os governados podem aceitar ou recusar. Não existe uma assembléia, um lugar central e acessível a todos, no qual todos se colocam como iguais politicamente, e de onde as decisões brotariam e para onde toda e qualquer divergência poderia voltar. Nesse sistema hierárquico e assimétrico, toda recusa é revolta. Não existe uma relação de homologia entre imperador e povo; eles não se encontram em lugar no qual todos são idênticos, mas, ao contrário, a presença do monarca marca a diferença, o outro não-igual e o espetáculo como sua marca. Assim é o imperador que escolhe e determina a direção do futuro; é ele que anuncia o possível e conclama o povo a segui-lo. Dessa forma, em uma relação desigual, o povo faz a sua parte, ou seja, aceita o pão e circo. Assim, pão e circo adquirem o conteúdo pedagógico de uma política na qual a submissão é o único caminho. É uma forma de governo dos espíritos, levando-os em direção aos desejos do imperador. A morte do outro, como aparece no título, se realiza nesse sentido em que não há nenhum tipo de reciprocidade, de valorização da voz de um sobre a ação de outro. O espetáculo imperial, ao encher os olhos dos espectadores com artifícios, esvazia suas almas da faculdade da deliberação tão cara ao ato da liberdade política e da construção do outro.
REFERÊNCIAS:
ARISTOTELES. Politique. Paris: Flammarion, 1998.
CASTORIADIS, Cornelius. Sobre o Político de Platão. São Paulo: Loyola, 2004. CICÉRON. République. Paris: Belle Lettres, 1986.
CICÉRON, Quintus Tullius. Petit manuel de campagne électorale. Traduit du Latin par J. Y. Boriaud. Paris, 1999.
JUVENAL. Ecrits. Paris: Garnier, 1947. PLATON. Le sofiste. Paris: Gallimard, 1987. _____. Le politique. Paris: Belles Lettres, 1976. VEYNE, Paul. Le pain et le cirque. Paris: Seuil, 1976.
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